sábado, 29 de setembro de 2007

Exposição

O que faz sentido realmente? Há lógica em nosso mundo? Realmente nosso mundo existe ou é algo inventado pelos homens?
Tive a certeza do caos que nossa existência vive ancorada, depois de conhecer as obras de Lacroem.
Foi durante o inverno passado, como jornalista para uma revista do Rio. Fiz uma matéria sobre a primeira exposição deste artista de Porto Alegre, num galpão de uma fazenda, que era o ateliê e residência do mesmo.
Chovia torrencialmente, um novo dilúvio. Um vento tão forte e frio, que parecia criar ondas em pleno ar. Varria os campos, quebravam nos muros, nas copas das árvores, carregando suas folhas por todo o espaço. Naquela noite, vim a entender depois, que até a natureza coabitava com sua obra.
Pelo salão havia grandes telas, que davam um ar de sonhos, realmente uma grande exposição da alma humana, do que tem de mais bonita. Os sonhos de Deus, contrastando com a insignificância da moral dos homens.
Lacroem mostrou-se um grande anfitrião, me pediu desculpas, porém se eu quisesse a entrevista naquela noite, teria que esperar acabar a exposição. Como eu tinha, que enviar a matéria, na manhã seguinte suportei a vernissage, os garçons, a música ambiente, os intelectuais e críticos da cidade.
Já era umas duas da manhã, quando percebi a ausência de Lacroem, fui me informar e seu secretário disse que ele passara mal, estava indisposto e tinha se recolhido.
Fiquei puto, estava decretada a minha demissão da revista.
Este fato me deixou mais colérico em relação aos artistas, aos críticos e aos intelectuais e todo o resto. Todos eram culpados da minha desgraça.
E por mim, e não por eles resolvi conseguir aquela entrevista. Lacroem só não a daria se estivesse morto. Como todos estavam preocupados, em definir a obra, da forma mais brilhantemente acadêmica possível, foi fácil sair do salão sem ser notado e procurar o quarto onde estava descansando a causa maior da minha demissão. Foi fácil encontrar o quarto, porque era o único lugar no corredor depois da escada que tinha porta...
Bati na porta por mais de três vezes, e sem resposta e vendo que estava encostada, entrei como um ladrão. Um ladrão tolo que só vai roubar se a vítima concordar. Ou seja, uma atitude imbecil.
Quando entrei, fiquei absorto com aquele lugar. Parecia que havia sido tele-portado para um outro mundo. Nunca imaginara encontrar algo assim em um galpão de fazenda. De repente todos meus sentidos afloraram de uma vez apenas. Era na verdade uma sala grande, com uma cama no centro, rodeada de paredes de vidro e protegida por jardins, iluminados indiretamente por luzes amareladas, com grandes folhagens em vários tons de verde. A chuva escorria pelas vidraças fazendo as imagens se distorcerem. Parecia estar em um grande aquário. O chão todo coberto por tapetes, persas, acredito. Centenas de almofadas de seda com pedrarias coloridas e reluzentes, algumas mesas, criados-mudos, todos de épocas e estilos diferentes. Vários vasos, objetos de decoração como narguilés egípcios. Na verdade, parecia um grande antiquário. A cama no centro do quarto, era rodeada por mesas cheias de velas de várias cores e tamanhos, acesas, refletindo uma luz alaranjada numa cortina fina que a envolvia. E o cheiro... Um cheiro adocicado dominava todo o ambiente. Uma essência de frutas vermelhas, talvez morangos, não consegui reconhecer, mas era algo inebriante.
Mas onde estaria Lacroem? Na cama, com certeza. Quando foquei meu olhar, no centro do quarto, notei a silhueta de um corpo sobre a cama. Aproximei-me lentamente, tentando me certificar se ele notara minha presença. Pousei lentamente minha mão na cortina e abri uma fresta para ver o corpo sobre a cama.
Estará dormindo, inconsciente ou morto?...
Era a aparição de um anjo. E eu me tornara um monge. Estava inebriado com a sua imagem.
Indefeso, inerte, um semblante de profundo êxtase, não sei se ao acaso ou propositalmente, seu corpo nu sobre a cama. Nunca havia sentido tanto prazer, ao observar uma imagem como naquele momento. É a mais bela imagem que meus olhos viram até hoje. Uma situação inocente e sensual. Entendi que a pureza é a maior expressão da sensualidade. Que a inocência nos faz lembrar a malícia. Um corpo nu, protegido por um frágil casulo de seda, refletindo a luz alaranjada das chamas das velas. Sua pele branca, suas mãos sobre o lençol, a luz oscilante sobre suas costas, reestruturando suas formas, seus olhos levemente fechado, seu delicado nariz, seus lábios rosados, sua mão, seus cabelos negros, molhados, colados ao acaso em seu rosto, o suor que refletia as luzes das velas como verniz. Um corpo que exala prazer pelos poros, que apresenta o eterno ao Existir.
O azulado da barba... Pêlos que insistem em crescer à noite para não findar o narciso ritual de barbear-se pela manhã. O eterno desejo da juventude, da beleza. Será que por isso pintaram Deus tão barbudo?
Lacroem, um homem que implora para ser admirado com um deus! Um deus que supera a beleza da arquitetura e decoração de seu próprio templo. E eu, um homem que implora para que seja eterno seu desejo. Não resisto aos seus apelos, aproximo-me lentamente, toco seu rosto, acaricio sua boca, sussurro seu nome.
Ele abre os olhos, sorrindo e se espreguiça como um felino. Vira-separa o lado, alça um lençol, tentando cobrir sua nudez. Pega a sua carteira de cigarros. Pede para que eu acenda. Agradece com um sorriso e traga, soltando sensualmente a fumaça. Me abraça e me agradece por esperá-lo.
Esta entrevista com certeza é a mais importante de minha vida, porque falarei da arte de viver, que na verdade está longe da realidade cruel do homem. – diz ele.
Então comecemos- digo formalmente.
De todas as obras que estão lá em baixo, a que mais representa o ser humano é Tuffy.
Esta pintura representa o equilíbrio entre a ação e a não ação existente em cada um de nós.
Essa figura mítica, homem-felino, forma e alma.
Os felinos, são animais que vêem nas outras espécies, uma forma de alimento. São animais que conquistam suas presas, que as fazem sentir prazer em serem escolhidas, devoradas. E o negro da pantera tem muito a ver com o abismo do desconhecido, no qual estamos todos inseridos. Não há certeza, quando estamos no escuro, estamos ao léu e apenas um ser negro pode passar desapercebido, camuflado, neste estado de abandono. Ele é a surpresa.
O homem enxerga todos os outros como caça.
Tuffy tem cabelos brancos, lisos e longos, acredito que assim são apenas para mostrar nossa vaidade. É lindo ver uma mulher escovando seus longos cabelos. E o branco mostra a antiguidade deste sentimento.
Fiz ele andrógino, para não excluir o masculino. A força ativa que faz valer sua vontade através do medo, contrastada com uma delicadeza feminina, com a doçura e leveza, que nos atrai e nos torna escravos de seus desejos.
As correntes em sua mão ao mesmo tempo significam nossa prisão. A nossa moral, que não nos deixa agir realmente segundo nossos instintos, nossas vontades. Porém também significa a força que lutamos contra essa prisão, e caso conseguirmos romper o elo dessa corrente, com certeza o que nos mantém presos será a arma que usaremos para nos libertarmos. Assim alçaremos vôo. E seremos livres. Isento de gravidade, do peso do julgamento do outro. Porem nunca em paz, por isso Tuffy ser um guerreiro.
Precisamos do outro, da androginia do outro, e isto nos causa amor e ódio.
Quanto ao relâmpago, é ele que nos dá a luz. Nos faz ver o que há de verdade na grande tempestade que é a vida. São lapsos de realidade, de verdade, que nos situa. Mas se formos atingidos pelo raio, pela verdade, morreremos.
O mar de cerveja. Espumantes ondas... O desejo de nos afogarmos, bêbados, sem sentido, morrermos sem culpa, inconseqüentes.
E quais são os desejos de Tuffy?- pergunto a você Lacroem.
Ser amado, ter um senhor leal, alguém que o respeite como animal, que conviva com sua natureza, sem querer domesticá-lo.
Tuffy é um animal solitário. Que busca tudo só. Que caça só, porque os seus não desejam o que Tuffy deseja. É a obra que mais amo. A que cheguei mais perto do que queria dizer, mostrar.
Um dia pediram para eu perdoar. Às vezes me pergunto se um artista pode ser perdoado pela sua criação. Poderia pintar seres mesquinhos, cenas que reforçassem a moral, a infelicidade, a mentira e a dor. Poderia pintar santos. Por que queremos tanto que o próximo seja santo? Por que gostamos tanto de fingir sermos divinos? Por que buscamos tanto uma bondade que não está em nós? Por que queremos agir tanto contra nossa natureza?Essa ditadura que criamos para nós, essa forma de aglutinarmos conceitos em nossa vida, que não tem nada haver com nossas almas. Com certeza se praticasse esse tipo de obra, também pediria perdão. – respodeu- Lacroem.
Tuffy é você, Lacroem?
Não, Tuffy é o ser humano, e nós temos que nos tornarmos humanos para sermos Tuffy. Boa noite, Lian. Fim da entrevista. Obrigado.
Lacroem levantou-se, vestiu um hobby e foi ver a tempestade.
Fui embora pela manhã. Já no Rio, disse a meu chefe que não tinha conseguido a entrevista com Lacroem. Afinal de contas era algo muito íntimo entre nos dois.

Um comentário:

Marcelo disse...

Nem preciso mencionar o talento irrefutável que marca seus contos né Juca!
Está sublime!!
Maravilhosamente lindo!
Parabéns mais uma vez, é bom ter o privilégio de poder sentir um pouco do que se passa nessa sua cabeça!
Abraços, Lelo!